terça-feira, 14 de agosto de 2012

O mundo vive uma confusão generalizada. Não é surpresa para ninguém que a história parece estar de cabeça para baixo! O escritor Fernando Sabino, muitos anos atrás tinha um pesadelo recorrente: sonhava com uma manchete de jornal apavorante, em que se lia em letras garrafais: “o inevitável aconteceu!” 

Um dos traços mais terríveis do mundo em que vivemos é normalização do anormal. As pessoas estão se acostumando ao horror, ao erro, à mentira. Nem a política carrega mais aquele despertar das utopias. No muro de uma Universidade em São Paulo, alguém rabiscou o seguinte: “Senhores políticos, por favor, queremos novas mentiras”. 

Hoje é normal ser estranho. Foi publicada em um jornal popular, tempos atrás, a seguinte manchete, que ficou famosa: “Matou a mãe sem motivo justo”. Somos a sociedade das coisas sem sentido. Tudo acontece, mas nada tem sentido. Arnaldo Jabor escreveu que “o cotidiano do nosso país e do mundo é feito de acontecimentos que não acontecem”. A vida humana está perdendo significado a cada nova trivialidade. É a Babel conceitual. 

A fronteira entre humanos e coisas está cada dia menos perceptível. Um grupo de ladrões invadiu um hospital para roubar botox. O corpo humano está virando mercadoria. Silicones que explodem no corpo, animalização sexual que vai desde o fetiche aos aromas afrodisíacos a mil. Imbecilização nacional via BBB ou os virais da net e suas Luízas... E ainda dizem que o homem veio do macaco!!! Como escreveu um jornalista: “macacos são bichos felizes, sem neuroses. Não podemos nos comparar a eles. Seria uma ofensa aos macacos. Se eles falassem, diriam: ‘Humanos não, heim! Humano é a sua mãe!’” 

A única certeza aqui é a constatação de Heráclito: “tudo flui, nada permanece”. Como igreja, fazemos diferença nesse cenário? Sérgio Pavarini disse que “somos o povo das respostas prontas e qualquer ponto de interrogação já abre o apetite dos canibais de cabeça”. O ministério da saúde mental adverte: mergulhar fundo em ideias rasas pode acarretar a paralisia dos pensamentos!

Fernando Pessoa escreveu algo fabuloso: “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia. E, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”. É tempo de ressignificarmos a nossa fé. Deus já está agindo! 


1. Deus está babelizando de novo! 

A Torre de Babel é um exemplo bíblico da desconstrução divina. É Deus na contramão. Deus no paradoxo. É o sagrado que se experimenta no oposto, no que não é, no que não se espera. Deus fora das conveniências. A Babel é a história de como Deus esvaziou a pretensão humana de domínio, controle, rivalização, ajuntamento que aniquila diferenças. 

Deus babelizando é um sinal de que, como igreja, estamos longe do ideal divino da vida: partilha e celebração, o oposto do espírito da Torre. A igreja não é dona absoluta de Deus nem das pessoas. Ela não é uma agência de um céu sob nova direção. É preciso esvaziar-se da pretensão de domínio, da “Síndrome do Cérebro”: personagem de uma série americana sobre dois ratos de laboratório. Cada episódio é caracterizado (tanto no início quanto no final) pela famosa tirada onde Pinky pergunta: "Cérebro, o que faremos amanhã a noite?" e Cérebro responde: "A mesma coisa que fazemos todas as noites, Pinky... Tentar conquistar o mundo!" 

A igreja não precisa conquistar o mundo, apenas amar as pessoas! 


2. Deus babelizando põe as pedras no lugar! 

Espalhadas! Deus não trabalha com pedras, mas com gente. Em Mt. 16. 18, Pedro precisou aprender essa verdade: “Tu és Pedro...” A questão que intriga é: somos pedra ou gente? A sequência do texto ilumina ainda mais, pois Jesus diz que “as portas do inferno não prevaleceriam contra a igreja”: só o inferno tem portas, a igreja é casa aberta, lugar de gente. 

Vivemos no mundo das pedras. A igreja tem se transformado numa comunidade empedrada. Filhos acinzentados da geogriafia, ficamos emparedados, reféns da mesmice religiosa dos cativeiros dos templos. A missão da igreja acontece na cidade. Entre gente, e não entre paredes. Entreos domingos, e não apenas aos domingos! 

Sejamos gente! 


3. Deus babelizando tranforma a linguagem 

Depois da Babel a comunicação precisou ser ressignificada. É preciso compreender que no Pentecoste, a Babel foi inversa, e a linguagem das confusões foi abolida. O problema é que interpretamos o extraordinário dentro do bizarro e ficamos apenas nas redondezas sem gramática das “linguas estranhas”, e esquecemos que dentro do que ninguém entende, cabe tudo. (Não sou contra a lingua espiritual, mas contra tudo que é estranho). 

A linguagem que Deus quer que falemos não é o ininteligível do êxtase sem conteúdo, mas a língua da aproximação, da quebra das distâncias: a língua do afeto para quem está na dor; a língua do amor para quem vive atolado na indiferença; a língua da esperança aos que estão sem horizontes. Qual língua você tem falado por aí? 

Muitos ainda são escravos da língua solta. Estão enquadrados no título de um texto que está num livro de Isaac Babel: “É conversando que a gente se desentende”. Escravos do verbo. Jesus é o verbo que veio para nos ajudar a falar! 

É preciso encontrar Deus na confusão da história e sinalizar os tempos de mudanças. 

Da inutilidade das explicações




É sempre ela: a explicação. Achamos que cabemos no que explicamos. Ledo engano. Teorizamos a pessoa que nunca fomos. No máximo o pálido sonho de algum dia ter sido. Frases, gestos, entonação de voz, mil alterações de humor, tons de pele, o rosto tentando mentir. Explicamos querendo trazer o “ex”, o “para fora de”, para dentro.

            Diante do espelho somos outro. Aquele que olha e o que é olhado. Idealizado. Aquele desmascarado. Ultrajado. Censurado. A tentativa de ser. As caricaturas. A dança estranha entre verdade e mentira que fala, mas não é. Explicamos: “ser humano é ser assim...”. Vencidos, assumimos, para nossa vergonha, que não somos. Liberdade talvez seja isso: o inexplicável.

            Somos atores medianos. Peças aleatórias? Um pouco de ar. Não cabemos naquilo que se explica com a arrogância típica das certezas. Deveríamos gargalhar de todos que bradam aos quatro ventos: “eu tenho respostas!” A vida não faz sentido nas respostas, mas nas dúvidas. É jazz. É sentir na pele. É o instante. O pequeno êxtase que faz a alma delirar. Pobre de quem tenta explicar o delírio.

            Deixe as pretensões pedagógicas. Solte as cordas. Desate os nós. Desça do salto. Erre. Viva. Seja. Crie. Falhe. Deixe. Rasgue. Esqueça. Durma bem. Diga mais a palavra “talvez”. É bom não saber de tudo. A tentação da explicação aborta o mistério. Ouça música de qualidade. Feche mais os olhos. Mire os emaranhados. Admire os descompassos, as pausas, as fissuras, os traços do tempo. É o dom do efêmero.

            Respire. Pare o show. Apague a luz. Desfrute da sombra. Sinta o cheiro do seu amor. Tire os sapatos e sinta o chão. Pela primeira vez, talvez, ande. Deixe-se embalar pelas surpresas do cotidiano, ainda que dolorosas. Renda-se. Desafine. Cante aquela música. “Siga o coelho branco”.

            Por favor, não tente explicar esse texto.

            “O que é já foi; o que há de ser, também já foi, e Deus investigará o passado” (Eclesiastes 3.15).
  Allan Brizotti